Os milhões da cultura de Donana Amsterdam são pra quem pode, não pra quem quer (ou “governo é pra quem tem poder”)

Disclaimer: Eu não ia blogar a respeito, porque tenho me abstido (ê palavra estranha) de meter minha feérica colher na deprimente política brasileira da qual não espero mais nada. Mas como muitas pessoas queridas vem insistindo para que eu fale sobre o assunto, registro aqui meu desabafo, pouco mais do que um copia e cola de comentários que fiz aqui e ali sobre o tema.

Estão todos falando (e sacaneando) do tal blogue que não é blogue da Maria Bethania — aquele com 365 vídeos de Andrucha Waddington e que vai custar um milhão e trezentos mil reais. E a soma parece mesmo impressionante para a realização de um blog (embora tenha órgão do governo que é acostumado a pagar absurdos por coisas simplórias na internet), mas segundo dizem alguns é até razoável quando se trata de um projeto que envolve 365 vídeos de um minuto realizados por profissionais que costumam cobrar caro. O milhão é para os vídeos, e não para o blogue em si. Tá entendido assim? Parece que sim. Mas o buraco é muito mais embaixo.

Será que esta bela oportunidade de usar (e valorizar, dizem alguns otimistas) a internet como meio de difusão de cultura estaria disponível para — digamos — produtores culturais normais que não fossem amigos do Rei e da Donana de Hollanda? Este comentário que fiz nos grupos de discussão do Global Voices Online começa a explicar a questão.

Antes do início da gestão Gilberto Gil no Ministério da Cultura havia uma “alta casta” cultural do Brasil que se apropriava de todo o dinheiro alocado para a Cultura. Tanto, que o Ministério da Cultura não tinha então qualquer caráter propositivo ou de construtor de políticas — resumia-se a um balcão de negócios para o qual eram protocolados projetos que eram pouco mais do que formalidades. As cartas já estavam marcadas, e os mesmos nobres artistas recebiam toda a grana.

Para quem tem boa memória, houve muito chororô por parte de muitos destes nobres artistas quando, no início da gestão Gilberto Gil, as regras do jogo começaram a ser revistas e o ministério começou elaborar políticas visando a distribuição mais igualitária dos recursos — o que invariavelmente fez com que alguns projetos destes reizinhos da cultura brasileira começassem a ser recusados. Vocês se lembram de algum filme de Tizuka Yamasaki ou de Guilherme Fontes produzido após 2003? Seus projetos não eram mais aprovados. Aliás, Guilherme chegou a ter um projeto aprovado, mas seu filme nunca ficou pronto. Ele simplesmente sumiu com a grana. E quem se lembra da briga de Ferreira Gullar com Gilberto Gil e o Ministério, que contou com a artilharia maledicente do ex-amigo-agora-capitalista-feroz Caetano Veloso? Todos estes micos aconteceram lá em 2005, e eu tava lá dentro pra ver a quizumba toda.
O que está acontecendo agora é que, com a gestão da Dona Louca dos Hollanda, esta velha alta casta está voltando a se apoderar do ministério da cultura (com letras minúsculas. não merece mais a caixa alta, como não merecia nos tempos de Francisco Weffort). A destruição da nova política de direitos autorais e a ruptura com as políticas dos anos Lula são apenas a ponta do iceberg visível para quem não trabalha na área. O que está acontecendo lá no fundo é mais nefasto. É o desmantelamento completo de um Ministério, que pouco a pouco parece estar sendo revertido no que era nos tempos de Fernando Henrique Cardoso. É por essas e por outras que eu digo que Dilma Rousseff começa seu governo com o pé da direita.

Então, meus caros, a questão não é o blogue (ou videoblogue, pra bom entendedor) da Dona Bethania, nem quanto custa uma diária de Andrucha Waddington, nem se — como questionaram alguns completos ignorantes sobre como funcionam as verbas públicas — deveria haver dinheiro para blogues quando tem gente sem casa no Paraná. A questão é QUEM nesse Brasil de Dilma e Donana tem poder de fogo pra levantar R$1.300.000,00 (e há quem diga que são R$1.700.000,0o) para fazer um videoblog. Como eu coloquei em uns comentários que fiz lá no FB:
Já li algumas pessoas falando (com razão) que um milhão de trezentos mil reais é uma conta barata por 365 vídeos. E é mesmo. A pergunta é: se fosse outra pessoa apresentando o projeto. Por exemplo, se fosse um coletivo de maracatú de Pernambuco… será que iriam aprovar? Vai ver Bethania (e Caê, e Tizuka Yamasaki, e outros nobres da cultura) são mesmo beneficiados por uma graça que devia ser de todos (e de graça). (aqui)
O problema não é o MinC injetar grana e influência para que Bethania possa se promover e fazer dinheiro. O problema é que Bethania não precisa dessa ajuda — ela é Maria Bethania,afinal! Todo mundo compra o que ela faz! — e os valores são muito elevados. Tá certo que custa caro fazer 365 filmes, mas o MinC precisa ajudar só pq uma velha tropicalista inventou que quer fazer 365 filmes e botar na internet? (…) E mais… a pergunta mais importante é… E se outras grandes vozes brasileiras que não são amigas dos Reis quiserem fazer o mesmo? Ou é só a Abelha Rainha que pode? (aqui)
A “des-reforma” da LDA é apenas a ponta do iceberg. O que está acontecendo, na verdade, é que o ministério da cultura (com letras minúsculas, pq a caixa alta era merecida apenas nos tempos em que ele era um Ministério) está sendo transformado novamente naquilo que era antes do governo Lula. O balcão de negócio da alta casta da cultura e dos amiguinhos de FHC. Dilma começou mesmo com o pé direito, né? (aqui)

Em tempo… o que está acontecendo com o Ministério da Cultura me lembrou imediatamente aquilo que aconteceu com o Ministério das Comunicações em 2005, quando o Governo optou por dar o MiniCom para o Hélio Costa, filhote da Globo, o que é a mesma coisa que dar o Ministério da Cultura para Ana de Hollanda (filhote da alta casta de artistas brasileiros acostumados à amamentação governamental). Sobre isso também comentei no FB, com todo o veneno que me é dado ter por ter assistido a palhaçada toda de perto:
Pra quem não lembra, quando Hélio Costa entrou no MiniCom, fodeu imediatamente com o nosso projeto de TV Digital que era tão promissor (do mesmo jeitinho que a Donana fodeu com nossa reforma da LDA). O PT dá a nossa bunda pro pessoal passar a mão e depois ainda colocamos a culpa só na mão boba? A mão boba é dos velhos safados de sempre. O que devia indignar vcs todos é que tudo isso é CASO PENSADO dentro de uma forma estúpida de fazer política. Coisa dos medrosos e medíocres daquele partido que elegeu, um dia, o melhor presidente que já tivemos. (aqui)

Então, em vez de quebrar seu DVD da Maria Bethânia (que está fazendo só o que toda a sua classe faz — tentar ganhar o seu por conta das amizades e influência), ou xingar a Donana de Amsterdam (que já é xingada o bastante e, cá entre nós, está fazendo bem o bastante o trabalho de servir aos interesses de quem está por trás dela), lembrem-se que este é só mais um capítulo da maneira PT — ou melhor, da maneira brasileira — de Governar. Para facilitar a agenda, dão alguns bois às piranhas, fazem aliança com os políticos mais podres que este país já viu, dão ministérios pra quem vai foder com a pasta, fingem que a Ditadura aconteceu em outra galáxia e num passado distante, se fazem de desentendidos. Falta coragem e sobra cu na mão, bença padrinho e “compra de estabilidade”. É a política do “Toma lá da cá, e eu te dou o seu se você me der o meu”. Quem se fode é você, que vota e acredita. E assim seguem os dias na velha colônia. Mas eu ainda preferia estar enganado quando digo que o único jeito de se consertar a merda é destruir tudo e recomeçar do zero. A realidade não tem provado o contrário.
P.S. pronto. bloguei. agora façam o que quiserem com o meu veneno.

13 Respostas to “Os milhões da cultura de Donana Amsterdam são pra quem pode, não pra quem quer (ou “governo é pra quem tem poder”)”

  1. […] Daniel Duende quebrou tudo aqui. Governo aqui, é mesmo pra quem tem poder. Isso pq é cultura. Magina o […]

  2. Gustavo Noronha Says:

    Brilhante. Faco minhas suas palavras. Costumo ser muito pragmático e pé no chão com as coisas e sei que no Brasil ainda é assim que se faz política – ainda assim acho que se cedeu muito mais do que o necessário desde que a campanha da Dilma comecou.

    Pelo menos uma coisa boa pode vir com isso tudo: os nossos amigos petistas vão ter que parar de fazer olho gordo pras merdas que seu partido fez e faz pra governar e talvez parem de ser tão duros na hora de criticar os adversários que fazem o mesmo. O mais provável infelizmente é o povo continuar se cegando e vendo ‘necessidade por uma causa maior’ em tudo que seu partido faz e ‘arbíitrio e malícia’ nas acões dos adversários.

    Enquanto não reconhecermos o problema como sendo o que é (geral, não específico de uma ala política) e vermos as questões sempre como ‘problema do outro’ a política brasileira vai continuar a mesma merda.

    • Obrigado, meu amigo.

      Tenho claro para comigo que este expediente de “beija-mão” é parte da política brasileira, e não deste ou daquele partido. A questão é que o PT ascendeu ao poder com a proposta, quase a promessa, de se mudar a forma de se fazer política neste país. E como diz o meu tio: ninguém é obrigado a prometer, mas se prometeu tem que cumprir. Os piores crápulas são aqueles que se fazem de santos. Os piores lobos são os que se disfarçam de cordeiros para melhor jantar.

      E sobre a cegueira endêmica e a visão seletiva dos fiéis de partidos e igrejas, tem este post aqui:

      A crença e a suspensão de descrença

      Enfim… é uma alegria quando até os moderados concordam com minhas radicalidades. Eu sei que pisamos chãos diferentes, mas existe uma hora em que ficamos todos no mesmo pé.

      Abraços do Verde.

  3. Sempre me pergunto na real, se não esperamos demais do PT. Apesar de tudo, sacam? Apesar do sapo barbudo, apesar dos 80% de aprovação popular. Me pergunto, se no fim das contas o único modo de movimentar as coisas, fora a anarquia já exposta aí pelo Duende, não é essa do PT.

    Não me confundam, não concordo com as práticas de governo do PT. Mas vendo gente que vocễ confiava tanto, se ajoelhar diante de práticas tão escroques, pesa na lembrança uma saudade de gente que tenha coragem de por o pau na mesa e comprar briga. Diplomacia neo-liberal não nos leva a lugar algum que não os interesses da galera do status quo.

    Cadê Brizola, cadê Prestes?

  4. Essa discussão, além de injusta, tá pra lá de cansativa.
    Eu gostaria de divulgar 2 links, pra que as pessoas se informem melhor e parem de falar besteira. A primeira é a última lista do Minc com as obras contempladas pela Lei Rouanet: http://bit.ly/dF6YIb
    O projeto da Bethania tá em audiovisual.

    Atentem para o fato de que iso NÃO É VEBA, é autorização pra captar. E, além da Bethânia, tem lá outras centenas de obras, com direito a captar quantias iguais ou superiores. Banda TCHAKABUM e outras manifestações obscuras e muito mais questionáveis, mas resolveram pegar justamente o melhor projeto pra cristo…

    Outro link útil é o projeto em si, pra que as pessoas vejam que trata-se de 365 filmes de 3 minutos, que envolvem pesquisa, produção e filmagem, e o mais importante: distribuição GRATUITA via internet (daí ser acoplado a um blog): http://migre.me/43Kp3

    Acho que, com toda essa polêmica, a Bethania vai desistir de fazer. Uma pena… quem perde somos nós, e a cultura brasileira.

    Sabe o nome disso? pérolas a porcos.
    Pronto, falei.

    • Olá Christiana,

      Eu entendo o seu ponto, mas talvez você não tenha percebido que o meu ponto não era o videoblog de Bethânia (e isso está escrito com todas as letras no post). O ponto é quem são as pessoas que tem acesso a este direito e, mais do que isso, o que está acontecendo (novamente) no MinC, tendo em vista uma conjuntura que é bem maior do que só este incidente relacionado à captação milionária.

      pronto, falei tb. =)

      p.s. em tempo, gosto de usar a expressão “pérolas aos porcos”, mas eu me assumo como preconceituoso intelectual. E vc?

    • Christiana, também defendo o projeto, mas não a quantia exorbitante do cachê de bethânia, quase metade de tudo que vai se captar: 600.000,00.
      Absurdo!

      • Mas este é exatamente o problema. Como eu já disse, não é o blog, mas sim as quantias, o aparente favorecimento desigual da artista. Mais que isso, um favorecimento de uma artista que NÃO PRECISA de favor algum. Leis de Incentivo existem pra incentivar quem precisa de incentivo. Maria Bethania faz parte de uma casta de artistas que — com certeza — podem vender e fazer dinheiro com qualquer obra que realizem. Já estão no topo, principalmente graças à indústria fonográfica, e NÃO PRECISAM de um incentivo que é escasso para artistas que dele precisam. Se alguém quiser apoiar o Blog de Bethania, que apóie, mas sem mamata de renúncia fiscal, oras!

  5. Post maravilhoso!

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