Já falei disso exaustivamente lá no meu tuíter, mas nunca é demais marcar uma posição sobre este tema. Acho deprimente a maneira como a mídia tradicional (mesmo em sua versão online) está tratando a morte do cartunista e padrinho do Santo Daime Glauco Villas Boas. Primeiro se preparou para transformar o crime em mais um “libelo contra a violência urbana” (ou mais especificamente, contra os pobres, que geralmente são os únicos culpados pela violência aos olhos da mídia tradicional). Depois, quando viu que estava enganada sobre o crime e sua autoria, resolveu transformar o autor do assassinato em “monstro”. Mas mudou rapidinho de alvo, e por fim resolveu eleger um culpado bem previsível: O Santo Daime. Tudo errado.
É a mídia brasileira dando a sua já famigerada sucessão de bolas-fora, em um já tristemente comum show de ignorância e afã de “informar” rápido, mesmo que falando besteira e desinformando. Apurar quem deve ser na verdade o tal rapaz que deu os tiros em Glauco, ou tentar entender mais sobre o Santo Daime perguntando para quem entende, parecem estar fora de cogitação. Vale mais fazer um perfil leviano do “assassino”, baseado em algumas poucas palavras ditas sobre ele aqui e ali, para depois levantar uma série de quesitonamentos para lá de estúpidos sobre uma das religiões mais mal compreendidas do país.
O Santo Daime não é uma bebida alucinógena como sugerem alguns jornais e seus leitores. Alucinógeno é um termo médico-farmacológico usado para designar uma substância que causa alucinações. Afirmar que o Daime é alucinógeno, e portanto taxar uma experiência religiosa por ele propiciada como “alucinação”, é a mesma coisa de falar que o a fé cristã é psicotomimética (substância ou prática que leva o indivíduo a apresentar sintomas psicóticos) por conta dos êxtases religiosos, relatos de curas milagrosas e de sonhos inspiradores de seus fiéis. Mas isso ninguém faz, claro. Falar mal da religião que metade do Brasil finge que segue (seja na versão católica ou na versão evangélica) não pega bem, mas chamar o chá sagrado de uma religião pequena e incompreendida de “alucinógeno” está muito bem. Parabéns pelo belo espetáculo de preconceito! A mídia brasileira mostra mais uma vez a sua mediocridade e burrice.
Ao mesmo tempo, chamar o assassino de Glauco de louco é quase a mesma coisa que dizer que ele matou sob influência de drogas. Na melhor das hipóteses, um juízo precipitado, tendo em vista que não se sabe com clareza o que aconteceu. Na pior das hipóteses, é uma afirmação sensacionalista para vender jornal mesmo. E quando se junta um “louco em potencial” com uma “religião pouco conhecida e misteriosa”, você tem um prato feito para a voracidade circense da mídia. Adicione a isso que estes dois elementos estão somados à lamentável (MESMO!) morte de um importante e controverso artista brasileiro, e você tem a bola da vez de nossa imprensa.
Mais do que isso, a busca por explicações fáceis e bodes expiatórios vai além das necessidades mercadológicas dos jornais. Ela tange também a nossa necessidade de olhar para o outro lado quando nos deparamos com a complexidade humana. Ninguém quer ver que somos complicados e imprevisíveis. Ninguém quer ver que gente como a gente pode matar gente como a gente. Prefere-se encontrar um motivo fácil, seja ele a loucura (que para muitos é o rótulo perfeito para colocar uma distância entre “eu” e “ele”) ou a tradição religiosa pouco conhecida seguida por vítima e algoz. Aliás, para quem não sabe, para muitos o Santo Daime é uma religião difícil de seguir, justamente porque o chá nos faz confrontar sem grandes escapatórias às complexidades de nossa condição humana. Uma grande ironia, principalmente quando se vê tanta gente ignorante tuitando piadas sobre “tomar um copo de Daime”.
Glauco Villas Boas era líder de um centro do Santo Daime há muitos anos. Era muito querido pelos frequentadores deste centro. Alguns deles me falaram coisas maravilhosas a seu respeito. E em meus quase 10 anos de residência em uma comunidade do Santo Daime, pude ver como o chá e a doutrina faziam bem a muitas pessoas ali. Para alguns, não era bem o que procuravam, e estes passavam por lá e iam embora, e seguiam sua vida. Para outros, era o verdadeiro Santo Graal, a chave para curas maravilhosas. Mas nada disso importa para boa parte das pessoas que não fazem até hoje idéia do que é aquela doutrina. O Daime é esquisito para o cidadão-médio-que-finge-que-é-cristã0-e-direito, e por isso se alguém ligado ao Daime foi morto por outra pessoa ligada às religiões ayahuasqueras, então a culpa deve ser do chá. Tão simples que até um peixinho beta poderia pensar assim, e olha que eles não são muito brilhantes.
É por essas e por outras que eu digo “ê povinho bunda esse pessoal que acredita nos jornais!”. Quer uma dica? Se não quer saber a respeito do mundo que te cerca, ao menos assuma sua ignorância em vez de vomitar verdades enlatadas consmidas alí na esquina. Somos todos ignorantes em algumas coisas, mas alguns de nós tem o grave defeito de ignorar a própria ignorância. =)
UPDATE:
E se você acha que estou pegando pesado demais, convido você a ter um olhar perspectivo sobre um circo midiático do passado que tem algumas semelhanças a com este. Não se trata só do Glauco (vá em paz, padrinho Glauco!), ou do Santo Daime (doutrina na qual eu mesmo não me encontrei, mas que respeito acima de qualquer outra religião que já conheci). Trata-se de perceber a retroalimentação perversa que existe entre a mídia que não se preocupa em informar e o público que não quer realmente saber. Vira palhaçada, vira circo, e quem ocupa o picadeiro são as vítimas e os bodes expiatórios que consumimos junto com o café da manhã. E no fim da estória, quem fica mais rico é o dono do jornal, e o nariz vermelho de palhaço continua onde sempre esteve: na sua cara.